segunda-feira, 3 de maio de 2010

1º de Maio: 60 anos do massacre de Rio Grande
Por Augusto C. Buonicore

À Angelina Gonçalves e Lila Ripoll

Primeiro de Maio de 1950. Era domingo. As organizações operárias, dirigidas pelos comunistas, ocuparam um antigo parque da cidade gaúcha de Rio Grande, e realizaram uma grande festa popular. Havia barraquinhas e bandas de música. No ato, é claro, não poderiam faltar os discursos inflamados. Os oradores se revezavam, lembrando a importância daquela data, denunciando o arrocho salarial e os sucessivos ataques promovidos contra os direitos e à liberdade de organização dos trabalhadores. Protestavam, também, contra os planos de guerra do imperialismo norte-americano. Conquistar a paz e o desarmamento nuclear eram as principais bandeiras dos comunistas naqueles anos sombrios nos quais o mundo parecia diante de uma nova guerra mundial. A humanidade corria perigo.

Crianças, homens, mulheres,

o povo unido cantava.

O povo simples da rua,

comovido se abraçava.

O mês das flores nascia

e o vento lembrava as flores

no perfume que trazia.

Foi num primeiro de maio,

de pensamento profundo.

“Uni-vos, ó proletários,

ó povos de todo o mundo”.

Alguns se queixavam dizendo que aquele Primeiro de Maio classista poderia ter sido bem maior, caso as autoridades locais não tivessem organizado, no mesmo dia e hora, um jogo entre o Esporte Clube Rio Grande e um renomado time carioca, o Vasco da Gama. Muitos comanheiros, menos conscientes, haviam preferido acompanhar a partida futebolística. Mesmo assim, poderiam ser contadas cerca de mil pessoas naquela combativa manifestação político-cultural, autenticamente proletária.

Acabado os discursos, os participantes resolveram sair em passeata pelo centro da cidade. Pretendiam terminar o seu grande ato na sede da tradicional União Operária, que havia sido fechada pelo governo Dutra no ano anterior. Era lá que os operários mais combativos se reuniam e organizavam suas lutas.

As intervenções ministeriais nos sindicatos, visando eliminar a presença dos “vermelhos”, levaram que os comunistas propusessem a criação ou o fortalecimento das organizações operárias autônomas – fora da estrutura sindical oficial. Acreditavam que essa era a única maneira de manter os trabalhadores minimamente organizados para a luta. A União Operária de Rio Grande era uma dessas muitas entidades livres que foram retomadas e reativadas pelos operários comunistas.

Foi quando a voz calma e séria,

no velho parque vibrou,

e um convite alvissareiro

o povo unido escutou:

“Amigos, a rua é larga.

Unidos vamos partir.

A nossa ‘União Operária’

nós hoje vamos abrir.”

No peito de cada homem

Um clarão aparecia.

Em qualquer parte do mundo,

uma estrela respondia.

“A casa de nossa classe,

fechada por que razão?

Amigos, vamos à rua,

e as portas se abrirão.”

A frente do cortejo destacava-se a figura da jovem tecelã Angelina Gonçalves. Suas mãos carregavam uma majestosa bandeira do Brasil. Ao seu lado caminhava sua filhinha Shirley de apenas 10 anos de idade. Eram seus dois grandes orgulhos.

Decididos, os passos ritmados

marcaram os primeiros movimentos.

Punhos fechados,

lenços agitados,

e o vento acompanha o movimento

da marcha triunfante.

“A Bandeira na frente, companheiros”,

e Angelina surgia, erguida e fina,

tocada pela luz da tarde mansa,

como um vivo estandarte a caminhar.

No entanto, antes que pudessem chegar ao seu destino, um delegado do DOPS exigiu que se dispersassem. Os trabalhadores não se intimidaram, insistiram em manter a manifestação. Iniciou-se, então, um conflito violento entre eles e os soldados da Brigada Militar gaúcha. Angelina lutou bravamente tentando impedir tirassem a bandeira de suas mãos. De repente, ouviram-se tiros. Seguiram-se gritos, gemidos e correria. O sangue escorreu pelas ruas de Rio Grande.

“A nossa Bandeira,

nas mãos da polícia?

E à luta regressa,

com febre no olhar.

E às mãos vitoriosas,

num breve momento,

retorna a Bandeira

batida de vento.

Um frio estampido

correu pelo espaço,

na rua vibrou.

Vacila a Bandeira,

vacila Angelina,

e a flor de seu corpo

na rua tombou.

No chão, ficaram os corpos sem vida de quatro valentes operários comunistas. Eram eles Euclides Pinto, pedreiro; Honório Alves de Couto, portuário; Osvaldino Correa, ferroviário e Angelina Gonçalves, tecelã. O vereador do povo Antonio Recchia, baleado na espinha, nunca mais voltaria a andar. Do lado da repressão, um soldado ficou ferido e logo morreria.

Inúmeros manifestantes foram conduzidos aos hospitais e mantidos sob severa vigilância policial. Muitos preferiam ser tratados em casa. Não queriam correr o risco de serem presos ou mortos. Os quartéis da Marinha e do Exército entraram em prontidão. A cidade de Rio Grande, que amanheceu em festa, agora, parecia uma praça de guerra.

No dia seguinte, a burguesia e o governo já sabiam a quem culpar por aquela tragédia: os comunistas. Um jornal local, cobrindo o enterro do soldado da Brigada Militar, estampou: “Compareceram ao sepultamento as principais autoridades e grande quantidade de povo, todos irmanados no mesmo sentimento de profunda dor, pelo golpe que os comunistas desferiram na cidade rio grandense, manchando-a do sangue rubro de suas ambições contra os interesses da nossa pátria e da democracia”. Invertiam-se os fatos, assassinava-se a razão. Vivíamos, então, um período de agravamento da guerra fria.

Morreram? Quem disse, se vivos estão!

Não morre a semente lançada na terra.

Os frutos virão.

Morreram? Quem disse, se vivos estão!

As flores de hoje, darão novos frutos.

Meus olhos verão.

Dois anos depois, o jornal comunista Voz Operária destacaria a figura de Angelina: “ninguém melhor que ela, operária, para proteger a nossa bandeira das mãos dos inimigos, mãos de Dutra, mãos americanas (...) Humilde e brava Angelina, a bandeira te enxugou o suor e o sangue e sentiu quando parou teu coração”. A poetisa comunista Lila Ripoll dedicou aos mártires de Rio Grande o belíssimo poema Primeiro de Maio, que ilustraram esse singelo artigo.

Veja abaixo o poema Primeiro de Maio de Lila Ripoll, publicado em 1954.

"Se heróis valentes como estes.

Em prol da pátria morrerem

Da terra, contra os tiranos,

Veremos outros nascerem".

Do Cancioneiro Gaúcho

FESTEJO

Foi num primeiro de maio,

na cidade de Rio Grande.

O céu estava sem nuvens.

O mês das flores nascia.

O vento lembrava as flores

no perfume que trazia.

O povo reuniu-se em festa

pois a festa era do povo.

Crianças, homens, mulheres,

o povo unido cantava.

O povo simples da rua,

comovido se abraçava.

O mês das flores nascia

e o vento lembrava as flores

no perfume que trazia.

Foi num primeiro de maio,

de pensamento profundo.

“Uni-vos, ó proletários,

ó povos de todo o mundo”.

Unido estava em Rio Grande,

o povo simples cantando.

No peito de cada homem

uma esperança se abria.

Em qualquer parte do mundo

uma estrela respondia.

Era primeiro de maio

dia da festa do mundo.

O velho parque esquecido

tinha um ar claro e risonho.

Germinava no seu peito

o calor de um novo sonho.

Misturavam-se cantigas,

frases, risos, alegrias.

No peito de cada homem,

um clarão aparecia.

Surgiam jogos e prendas,

hinos subiam ao ar.

Em cada grupo uma história

alguém queria contar.

A tecelã Angelina,

vivaz e alegre cantava,

Recchia - o líder operário

ria e confraternizava.

Era primeiro de maio,

dia de festa do mundo.

Foi quando a voz calma e séria,

no velho parque vibrou,

e um convite alvissareiro

o povo unido escutou:

“Amigos, a rua é larga.

Unidos vamos partir.

A nossa ‘União Operária’

nós hoje vamos abrir.”

No peito de cada homem

Um clarão aparecia.

Em qualquer parte do mundo,

uma estrela respondia.

“A casa de nossa classe,

fechada por que razão?

Amigos, vamos à rua,

e as portas se abrirão.”

A onda humana agitou-se,

Cresceu em intensidade.

Em coro as vozes subiram

clamando por liberdade.

“Á rua,à rua, sem medo,

unidos, vamos marchar.”

Foi como se uma rajada

De vento encrespasse o mar.

PASSEATA

Sem demora, a passeata organizou-se.

Rompeu-se a indecisão.

Um sopro audaz passava em cada rosto,

onde os olhos falavam com estrelas,

na densa escuridão.

Espontâneas as filas se formaram

e ergueram-se a cantar.

Nas mãos erguidas, lenços tremularam,

impacientes também para avançar.

- Quem vai na frente? Quem? disseram vozes.

E três vultos surgiram, decididos.

Eram pedreiros uns. Outros portuários.

- Recchia, Osvaldino, Honório, Euclides Pinto -

e também Angelina, a tecelã.

E a passeata iniciou-se: “Adiante, amigos

Avancemos sem medo. A rua é nossa.”

Ouviu-se a voz sonoramente clara,

indicando o caminho a percorrer.

Decididos, os passos ritmados

marcaram os primeiros movimentos.

Punhos fechados,

lenços agitados,

e o vento acompanha o movimento

da marcha triunfante.

“A Bandeira na frente, companheiros”,

e Angelina surgia, erguida e fina,

tocada pela luz da tarde mansa,

como um vivo estandarte a caminhar.

Os passos ritmados,

batiam sem cessar.

“Viva a classe operária. Salve. Viva!”

Era o coro das vozes a clamar.

Como um pássaro verde, muito verde,

a Bandeira voava,

revoava,

por sobre o mar humano a se espraiar.

Flutuavam lenços, mãos gesticulavam.

Vozes subiam animando a marcha.

E as filas andavam sem parar.

A “União” já estava quase a aparecer

e os punhos se fechavam.

Um sopro audaz passava em cada rosto.,

onde os olhos brilhavam.

“Viva a ‘União’, companheiros, viva o povo”.

E a voz interrompeu seu entusiasmo

e um silêncio caiu, inesperado.

E logo uma palavra subiu clara,

atravessando homens e mulheres,

como um fino punhal.

“A polícia, a polícia, companheiros”.

E houve um leve arquejar. E alguém falou:

“Avançar, companheiros, avançar.”

Era Recchia investindo desarmado

E a onda contida transbordou.

ANGELINA

A massa resiste,

rebelde,

indomável,

erguendo muralhas,

de peitos e braços,

às frias espadas,

aos altos fuzis.

A rua tranqüila,

tão cheia de cantos,

encheu-se de cinza,

de sangue e de pó.

O povo resiste

e os tiros aumentam.

Protestam as vozes

Num vivo clamor.

Respondem espadas,

fuzis apontados,

fuzis metralhando.

A massa recua,

retorna e avança

com novo vigor.

Na rua estendidos,

Euclides e Honório,

e mais Osvaldino,

fecharam seus olhos,

seus lábios calaram.

As vagas aumentam

de ódio incontido.

E há novos protestos

do povo ferido.

Alguém arrebata

das mãos de Angelina

a verde Bandeira

que ondula no ar.

Os tiros procuram

o peito de Recchia.

E os tiros ficaram

no peito a morar.

Os olhos dos homens

refletem angústia,

revelam paixão.

Ferido está Recchia,

e há sangue no chão.

Ninguém junto ao leme,

ninguém no comando.

Vermelhas papoulas

matizam o chão.

O rosto em tormento,

cabelos ao vento,

retorna Angelina,

mais alta e mais fina.

“A nossa Bandeira,

nas mãos da polícia?

E à luta regressa,

com febre no olhar.

Os braços erguidos,

subiam, caiam,

em meio a outros braços,

o mastro a arrastar.

E às mãos vitoriosas,

num breve momento,

retorna a Bandeira

batida de vento.

Um frio estampido

correu pelo espaço,

na rua vibrou.

Vacila a Bandeira,

vacila Angelina,

e a flor de seu corpo

na rua tombou.

AMANHÃ

Morreram? Quem disse, se vivos estão!

Não morre a semente lançada na terra.

Os frutos virão.

Morreram? Quem disse, se vivos estão!

As flores de hoje, darão novos frutos.

Meus olhos verão.

Num dia, tão certo, tão claro, tão perto,

Verei pelas ruas o povo ondulando,

marchando a cantar.

Nas mãos estandartes, a febre nos olhos,

nos lábios palavras de claro sentido:

“Poder popular!”

Figuras do povo nos grandes cartazes -

Euclides e Recchia, Honório, Angelina -

que grande emoção!

As flores caindo das altas janelas,

floridas também. E as palmas ecoando

no meu coração!

O nome de Prestes, num ritmo exato,

por todos cantado, sonoro, sem manchas,

na tarde a vibrar.

As flâmulas altas, de cores variadas,

nos mastros subindo, descendo, ondulando,

e o vento a girar.

Mistura de vozes - de velhos, crianças,

De homens,mulheres, do povo nas ruas,

do povo a cantar.

A grande alegria caindo dos olhos,

Das vozes, das flores, do dia sem nuvens:

“Poder Popular!”

Num dia, tão perto, tão claro, tão certo,

Meus olhos verão.

Não morre a semente lançada na terra.

Os frutos virão!

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